"Não tem mais bagunça na sala e nem sua meia soltando
pelinhos pretos que parecem terra. Hoje vou conseguir me esparramar
bastante na cama e dormir, dormir, dormir. Vou poder ver coisas leves na
televisão e não passar mais mal com seus jornais cheios de desgraça.
Não tem mais você me fazendo comer o doce com licorzinho. Sobrou um buraco triste entre o sofá e a planta.
Não tem mais seu secador de cabelo que me fazia sorrir como só as
pessoas que sentem muita paz conseguem. E você pra contar mais umas das
500 histórias que me fizeram, pela primeira vez, não querer tanto ocupar
a vergonha de gostar com minha voz. Não tem sua euforia, a cordinha da
alegria na qual você se agarra porque tem medo do que passa abaixo dos
seus pés. Não tem mais seus olhos arregalados além do susto, me pedindo
que a gente se divirta, que a gente consiga porque, afinal, a vida não
anda das mais fáceis pra você e você, sempre como um touro, tenta e
consegue tudo. Olhos tão arregalados pra devorar, como um predador, pra
se dar, pra correr atrás do que mata tanto desejo, pra conquistar o
mundo com uma força que me faz ficar horas te olhando quase sem ar. Mas
um pouco cego pra momentos cruciais de delicadeza e interpretação. Os
vencedores são mesmo um pouco egoístas e apesar de você ter me visto
tanto e feito tanto e sido mais do que tanta gente que tentou bastante, é
claro que a luz principal você deve guardar para o seu caminho que eu
tenho certeza que será maravilhoso. Olhar com amor requer um tempo que
pessoas de passagem não podem e não devem ter e eu, em vão, tentei ser
aquele maluco da plateia que agarrou o corredor rumo ao pódio solitário.
Você está certo em exibir ao mundo tantos dentes
e tão brancos. Eu é que estou errada quando paro um pouquinho para
olhar com tristeza esses sustos do amor. Não tem mais você tirando sarro
quando eu não aguentava a dor no peito e te dizia no escuro que era
mais ou menos amor mesmo. Porque era. Porque é. Se você soubesse o
estado que estou agora, zumbi, pegando detalhes seus por aqui, e doendo
tanto que nem sei mais por onde começar. Eu não aguento mais começar.
Queria tanto continuar. Não sei, não aguento, ainda não posso, mas
queria continuar. Alguma coisa deu errado em mim, eu não sei te
explicar e eu não sei como arrumar e nem sei se tem ajuda pra isso. Mas
meu corpo inteiro se revolta quando gosto de alguém. Me armo inteira pra
correr pra bem longe e pra lutar com unhas gigantes quem tentar
impedir. Me mata constatar como é ridículo ficar com saudade só de você
ir tomar banho. Ter que sentir ciúme ou mágoa ou solidão e sorrir para
não ser louca. Eu sinto de um tamanho que eu não tenho e então começo a
adoecer, como sempre. Eu não sou louca, eu só não tenho pele pra
proteger e quando você toca em mim eu sinto seus dedos e olhos e salivas
deslizando por todos os meus órgãos. E você não precisa entender o medo
que isso dá, mas talvez um dia possa ter carinho. Ao final sobro eu aqui, nem doar sangue eu posso
porque não tenho tamanho, com medo das horas, dos sons, dos meus ossos.
Se você pudesse ver agora, tão pequena, tão desesperada, tão
apaixonada, você me diria tantas coisas horríveis de novo? Se você visse
como flutuo pela casa sem conseguir pisar no chão porque dói demais
você não estar aqui, você diria novamente que eu peso demais?
Me perdoe pelos meus mil anos à frente dos
nossos segundos e pela saudade melancólica que eu senti o tempo todo
mesmo sendo nossos primeiros momentos. Pelo retesamento na hora de
entregar. Pela maneira como eu grito e culpo quem tiver perto por uma
angustia que sempre foi e será só minha e que eu sempre suporto mas
quando sinto amor fico achando que posso distribuí-la um pouco, mesmo
sabendo que é fatal. Me desculpe por eu ter querido tanto ficar
bonita e perfeita e só ter conseguido olheiras e ossos. Me perdoe pelas
vezes que de tanto querer leveza acabei pesando a mão. De tanto querer
sentir, pensei sobre como estava sentindo, e perdi o sentimento. Ou
senti sem pensar e isso pra mim é como meus medos das drogas e então
precisei roubar a chave do carro do seu bolso pra me proteger de não
olhar mais uma vez você e nunca mais voltar pra casa. Minha maior dor é
não saber fazer a única coisa que me interessa no mundo que é amar
alguém. Me perdoa por eu querer de uma forma tão intensa tocar em você
que te maltrato. Minha mão acostumada com um mundo de chatices e coisas
feias fica tão gigante quando pode tocar algo lindo e puro como você,
que sufoca, esmaga e estraçalha. Me perdoe pela loucura que é algo tão
pequeno precisando de amor e ao mesmo tempo algo tão grande que expulsa o
amor o tempo todo. Eu sou uma sanfona de esperança. Eu tenho estria na
alma. Enfim. Cansei de pedir desculpa por quem eu sou.
Cansei de ouvir de todo mundo como é que se trabalha, se ama, se
permanece, se constrói. Eu tentei com todas as forças amar você e agora
sofro com todas as forças pelo buraco que ficou entre o sofá e a planta e
o meu coração. Você vai embora e eu vou voltar para as minhas manhãs
com o iogurte que eu odeio mas que é a única coisa que passa pela
garganta quando o dia tem que começar. Vou voltar para aqueles e-mails
chatos de pessoas que eu odeio mas que pagam esse apartamento sem você. E
ficar me perguntando de novo para quem mesmo eu tenho que ser porque só
tem graça ser para alguém. E que se foda o amor próprio. Você me disse e me olhou de formas terríveis mas
o que sobrou colado em cada parte do dia e de mim é a maneira como você
sorri levantando que nem criança o lábio superior direito e como eu
gosto de você por isso e por tudo e mesmo quando é ruim e sempre quando é
incrível e ainda e muito e por um bom tempo."